RÚSSIA – 1973
– Tá mesmo?
– Sem erro.
– Ainda não tô vendo nada!
– Shiu! Vai acordar a Sra. Menfford.
– ‘Peraí, que eu vou buscar água.
A chuva fustigava a janela com violência, não deixando nenhuma dúvida de sua presença sobre a casa. Era um típico dia de inverno, frio demais para qualquer outra pessoa em qualquer outra parte do globo, mas não para três adolescentes inquietos numa cabana no coração da Rússia. Seus pais, três excêntricas famílias distintas, tiveram que viajar a negócios e resolveram deixar seus filhos sob os cuidados de uma velha senhora que morava na encosta de um morro àquela época coberto de neve.
– Ótimo, fim do acampamento.
– Alguém quer água? – Vittoria retornou com um copo de vidro com água que bebeu completamente e depositou sobre a mesa de centro circular no meio da sala de visitas, onde os dois garotos estavam atirados.
_Quero uma solução, que diabos faremos nessa chuva?
Vittoria limitou-se a sorrir diabolicamente para Dimitri e apontou para o copo que repousava inutilmente a frente dos três.
– Copo!
– Do que você está falando? – exclamou Bhramz, o menor dos garotos e o menos provável de parar na cadeia dali a uns três anos.
– Ah, sim! Não, não, Vittoria, precisamos de um copo virgem!
– Copo vir…? Dimitri, do que você está falando?
– Você é idiota? – Vittoria disse dando um safanão em Bhramz.
– Ai! Que foi?! Só nunca ouvi falar!
Enquanto os dois discutiam, Dimitri já voltava da cozinha trazendo um outro copo intocado.
– Esse aqui faz parte da coleção “Não se aproxime” da Sra. Menfford.
_Excelente! – disse Vittoria já se aproximando e surrupiando o copo das mãos gélidas de Dimitri. – Olhe e aprenda Bhramz – continuou Vittoria arrancando uma folha do caderno e escrevendo coisas incompreensíveis para o pobre Bhramz.
Sua cabeleira loira caía sobre o pedaço de papel e ela não via a expressão cobiçosa estampada no rosto de Dimitri ao seu lado. A garota ergueu o corpo, deu um sorriso zombeteiro e iniciou a brincadeira:
– Oh, espíritos que aqui residem…
Bhramz se encolheu.
_… se nos escutam nesse momento… – Vittoria olhou sombriamente para Dimitri, que sorria perversamente , então encarou o vazio sem foco. – PROVEM!
Silêncio.
Bhramz respirou fundo, mas antes que pudesse dizer algo, o atiçador da lareira caiu com estrépito.
Ele pulou da poltrona em que estava sentado e gritou como nunca fizera na vida.
Dimitri e Vittoria riram desesperadamente.
– Não acredito que você caiu nessa! Babaca!
– Vão para o inferno! – Bhramz xingou levantando e subindo as escadas que levavam aos quartos.
– Ele é tão criança! – disse Dimitri vendo Vittoria pegar o atiçador caído no chão. Sabia que as garotas não gostavam de meninos imaturos e queria passar uma imagem bem adulta para a garota que desejava.
Vittoria soltou um sonoro grito e recuou uns dez passos.
– O que foi? – Dimitri veio correndo e reparou a figura sombria e parada à luz da noite na janela próxima a lareira na varanda da cabana da Sra. Menfford.
– BHRAMZ! – exclamaram em uníssono.
De fato, o franzino garoto de cabelos ruivos estava parado do lado de fora da casa. Ele os encarava da janela, mas seus olhos estavam desfocados, como se não os visse realmente.
– O que ele está fazendo lá fora? – sussurrou Dimitri.
Nenhum dos dois entendia como o pequeno colega fora parar ali tão rapidamente.
– Ele pode ter pulado a janela!
– Impossível! Vimos ele acabar de subir as escadas, uma queda das janelas é de mais de…
Vittoria gritou esganiçada outra vez e não conseguiu concluir sua fala. Bhramz pusera sua mão repentinamente sobre a superfície de vidro da janela fechada, exibindo uma palma tão branca que era de se esperar que fosse de alguma coisa morta.
– Ele está tentando assustar a gente? – Dimitri perguntou recuperando parte de sua coragem, mas ainda sussurrando, pois nunca vira o garoto, geralmente muito medroso, agir daquele jeito.
As pontas dos dedos de Bhramz se dobraram e ele começou a arranhar o vidro, produzindo um incômodo barulho. Ele não conseguiu abrir, mas ao invés de parar, pressionou as unhas com mais força. Seus dedos começaram a sangrar à medida que suas unhas iam quebrando e se enfiavam para dentro da carne. A substância avermelhada que saía de seus dedos ia caindo lenta e horizontalmente em direção ao solo.
– Eu estou assustada, Dimitri. Vou pegar as chaves e tirá-lo lá de fora.
Vittoria deu meia-volta e subiu as velhas escadas que conduziam ao primeiro andar da rústica cabana de Katerina Menfford. A madeira rangeu a cada degrau que ela pisava, arriscando ceder a qualquer instante.
O corredor do primeiro andar estava imerso na escuridão. Vittoria sabia que a cada passo, o soalho velho denunciava sua posição e sentiu medo. Uma risadinha incessante começou em um dos cômodos e não parou mais.
– Sra. Menfford? – ela perguntou, se aproximando da porta de onde as risadinhas saíam – sra. Menfford, a senhora está aí dentro?
– É claro que não está.
Vittoria gritou feito louca seguida por Bhramz, que se assustou com o grito da garota.
– Bhramz? Que susto, garoto. Por que você foi se enfiar lá fora, hein? Dimitri! – ela gritou para a sala de visitas lá embaixo – Ele está aqui em cima!
– Me enfiar lá fora? Mas eu estive aqui encima o tempo todo…
Vittoria fez sinal para que ele se calasse.
– Dimitri! Por que não me responde? – chamou Vittoria descendo as escadas, acompanhada de Bhramz, que roía as unhas.
A janela estava aberta. Vittoria meteu a cabeça lá fora, espiou dos dois lados e se virou para falar com o garoto.
– Muito bem. Para onde o Dimitri foi depois que você pulou?
– Eu não pulei! Estou te dizendo! Estive lá encima esse tempo todo.
Vittoria revirou os olhos.
– Não, não esteve. Pare de ficar repetindo isso…
Mas então ela viu. As mãos do Bhramz a sua frente estavam intactas. A do garoto que vira do lado de fora da cabana deveriam estar todas machucadas e repletas de sangue.
– Se você está aqui… então quem…?
Vittoria gritou pela última vez àquela noite. E, naturalmente, a última vez em toda a sua vida. Bhramz assistiu sem poder fazer nada quando duas mãos ensanguentadas puxaram a garota pela cintura para fora da cabana.
Bhramz estava horrorizado. Deveria ajudar Vittoria? Mas estava tão quieto lá fora… Provavelmente ela já estava… Foi quando uma risadinha começou do lado de fora, a risada dele, é que Bhramz perdeu a cabeça e saiu correndo da sala de visitas para a sala mais próxima.
– Oh, meu Deus – ele gemeu, apavorado – oh, meu Deus, o que é isso?
O corpo de Dimitri rodava no ventilador que pendia com o peso dele, seus olhos estavam vidrados e encaravam o Bhramz pálido ali embaixo.
Ele teve vontade de desmaiar e pareceu ficar preso aos olhos sem vida de Dimitri. Até que ele viu uma figura de cabelos ruivos se ergueu sorrateiramente atrás dele através da retina do falecido colega.
Bhramz soltou um berro ensurdecedor, mas ninguém veio em seu socorro. Não houve sra. Menfford, não houve ninguém. Ele correu para o fundo da sala, mas não tinha saída. Ele foi obrigado a olhar para o que quer que estivesse em sua frente e o choque não poderia ser maior ao ver a si próprio segurando o atiçador de lareira que caíra ao chão durante a brincadeira.
O doppelgänger de Bhramz tinha os olhos desfocados, as unhas e a boca sujas do sangue de seus amigos. Ele riu e novamente o riso de Bhramz foi emitido de uma boca que não era a sua.
– Não mexa com quem está em paz, garotinho. Quem cutuca os mortos, dá a entender que está cansado dessa vida – a sua voz falou.
O duplo de Bhramz jogou o atiçador no chão aos seus pés e saiu pela porta da cabana, poupando-o (ou não) de uma morte brutal.